As Vozes da Utopia de Svetlana Alexievich, primeira belarussa a ganhar prêmio Nobel

Svetlana Alexievich é a primeira escritora belarussa a ganhar o prêmio Nobel, cuja cerimônia oficial de recebimento será no dia 10 de dezembro de 2015, às 10:00 (horário de Brasília). A transmissão ao vivo estará disponível no site do prêmio: http://www.nobelprize.org/index.html

Svetlana ganha o prêmio “pela sua escrita polifônica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época”.

www.nobelprize.org

A escritora nasceu no dia 31 de maio de 1948 na cidade de Stanislaviv (atualmente – Ivano-Frankivsk, Ucrânia). Cresceu em Belarús, onde mora atualmente, sendo cidadã belarussa. Escreve em russo.

Os livros mais famosos de Alexievich são “A Guerra não tem rosto feminino” (“У войны не женское лицо”, 1985), contando os relatos das mulheres que sobreviveram a Segunda guerra mundial; “As últimas testemunhas: o livro de contos não infantis” (“Последние свидетели: книга недетских рассказов”, 1985), as memórias das crianças crescidas durante a guerra; “Os meninos de zinco” (“Цинковые мальчики”, 1989), sobre os soldados soviéticos que lutaram no Afganistão; “A Reza de Chernobyl” (“Чернобыльская молитва”, 1997), que conta a história da tragédia nuclear; e o mais recente, “O Tempo Second-Hand” (“Время секонд хэнд”, 2013) que retrata o fim do “homem vermelho”, o homem soviético em sua transformação em pós-soviético. Estes livros formam o ciclo “As vozes da Utopia” (“Голоса утопии”).

Estudantes do Colégio Real de Música da Suécia criaram uma trilha sonora para as obras de Alexievich, como parte da exposição “Nobel Creations”, e o canal da TV belarussa BELSAT juntou a música com as imagens do seu acervo de vídeos. Agora vocês podem assistir a ilustração vídeo-musical para os livros da escritora: https://youtu.be/AZFOXGonchY

BELSAT é unico canal da TV belarussa que decidiu transmitir a palestra da ganhadora do Nobel e a cerimônia do recebimento do prêmio. Outros canais belarussos são controlados pelo governo e, como o ditador do país não apoia a escritora e seu posicionamento político, resolveram não alterar a programação habitual, justificando essa decisão por falta de dinheiro para compra de direitos de exibição – que na verdade são concedidos de maneira totalmente gratuita pela organização do evento.

Svetlana trabalha com o gênero de “novela coletiva”, documentando os relatos das vítimas de tragédias, das testemunhas dos eventos históricos, sem destacar diretamente sua posição de autora nos textos. Essa maneira se revelou também na palestra da escritora ao ser laureada, no dia 7 de dezembro, intitulada “Sobre a batalha perdida”.

O vídeo da palestra: https://youtu.be/aQI2QPK-nQQ

Segue o texto completo do pronunciamento em português (traduzido por Volha Yermalayeva Franco).

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Sobre a Batalha Perdida

Eu não estou sozinha neste palco… Ao meu redor tem vozes, centenas de vozes, elas estão sempre comigo. Desde a minha infância.

Eu cresci no interior. Nós, crianças, gostávamos de brincar na rua, mas de noite, como se fosse um ímã, nos atraiam os banquinhos perto das casas, onde se juntavam as cansadas mulheres do vilarejo. Nenhuma delas teve marido, pai, irmão, eu não lembro de homens depois da guerra no nosso vilarejo – durante a segunda guerra mundial em Belarús no front e nas guerrilhas morreu um em cada quatro belarussos. Nosso mundo infantil depois da guerra era um mundo de mulheres. Mais de tudo eu me lembro que as mulheres não falavam de morte e sim, de amor. Contavam, como estavam se despedindo no último dia dos homens amados, como os esperavam e estão esperando até agora. Passaram-se anos, mas elas continuavam esperando: “mesmo se voltar sem braços, sem pernas, vou carregá-lo nos meus braços”. Sem braços… Sem pernas… Acho que desde a infância eu sabia o que é amor…

Aqui estão só algumas melodias tristes do coro, que eu escuto…

A primeira voz:

“Para que você quer saber? É tão triste. Encontrei meu marido na guerra. Eu era da equipe de tanques. Cheguei até Berlim. Me lembro, estamos nós lá, perto do Reichstag, ele nem era meu marido ainda, e ele me diz: “Vamos nos casar. Eu te amo”. E eu fiquei tão ofendida com essas palavras – passamos pela guerra sempre na poeira, na lama, no sangue, só os xingamentos ao redor. E eu lhe respondo: “Primeiro faça de mim uma mulher: me dê flores, me diga palavras de amor, vou me demobilizar e costurar um vestido”. Queria até bater nele de tanta ofensa. Ele sentiu isso tudo, ele tinha uma bochecha com queimadura, com cicatriz, e eu estou vendo lágrimas nessa cicatriz. “Tudo bem, eu caso com você”. Falei assim… eu mesma não acreditei que falei aquilo… Só tinha cinzas ao redor, tijolos qubrados, resumindo, a guerra…”

Segunda voz:

“Nós morávamos perto da usina nuclear de Chernobyl. Eu trabalhava numa pastelaria, moldava pasteis. Meu marido era bombeiro. Nós tínhamos acabado de nos casar, íamos até mesmo ao mercado de mãos dadas. No dia que a usina explodiu meu marido estava de plantão no corpo de bombeiros. Eles foram com as próprias camisas, roupa normal, é uma explosão na usina nuclear e eles não receberam nem roupa especial. Assim vivíamos… Sabe… A noite toda estavam eles apagando o fogo e recebendo doses mortais de radiação. De manhã cedo eles foram levados de avião para Moscou. Doença de radiação aguda… a pessoa vive somente algumas semanas… O meu era forte, esportista, ele foi o último a morrer. Quando eu cheguei, me disseram que ele estava numa enfermaria especial, onde não deixam entrar ninguém. “Mas eu o amo” – estava pedindo. – “Eles estão sendo atendidos por soldados. Está indo aonde?” – “Amo”. – Tentavam me convencer: “Ele não é mais o homem que você ama e sim, um objeto para ser descontaminado. Entende?” Eu continuava insistindo: eu amo, eu amo… De noite subia para vê-lo pela escada de incêndio… Ou pedia os guardas de noite, dava dinheiro para eles me deixarem entrar… Eu não o deixei, estive com ele até o final… Depois da morte dele… alguns meses depois, eu tive um filha, ela viveu somente alguns dias. Ela… Nós esperávamos tanto por ela, e eu a matei… Ela me salvou, absorveu toda a radiação. Tão pequenininha…  Minúscula… Mas eu amava eles dois. Será que é possível matar com amor? Por que o amor  e a morte andam lado a lado? Sempre estão juntos. Quem pode me explicar? Estou de joelhos em frente ao túmulo…”

A terceira voz:

“Como eu matei um alemão pela primeira vez… Eu tinha dez anos, os partisans já me levavam para as missões. Aquele alemão estava ferido, deitado… Me disseram para tirar a arma dele, eu cheguei perto, mas o alemão segurou a arma com as mãos e estava apontando para o meu rosto. Mas ele não consegui atirar primeiro, eu consegui…

Eu não me assustei ao matar… E durante a guerra não lembrava dele. Tinha muitos mortos ao redor, nós morávamos entre os mortos. Eu fiquei surpreso quando muitos anos depois surgiu um sonho sobre esse alemão… Esse sonho estava aparecendo para mim várias vezes… Ora estou voando e ele não me deixa. Você está subindo… Voando… voando… Ele me alcança e eu caio junto com ele. Dentro de algum buraco. Ora estou tentando levantar… subir… E ele não deixa… Por causa dele não consigo voar embora…

O mesmo sonho repetido… Ele me perseguia durante décadas…

Não posso contar esse sonho ao meu filho. Meu filho era pequeno – eu não conseguia, lia contos para ele. Agora ele já cresceu – mesmo assim não consigo…”

 

Flaubert dizia sobre si que ele é um homem-pena-de-escrever, eu posso dizer sobre mim, que sou homem-orelha. Quando eu ando pela rua e algumas palavras, frases, exclamações chegam até mim, eu sempre penso: quantos romances estão desaparecendo no tempo sem deixar um rastro. No escuro. Tem essa parte da vida humana – parte falada, que não estamos conseguindo conquistar para a literatura. Nós ainda não a valorizamos, não estamos surpresos e admirados por ela. Mas eu fiquei fascinada e capturada por ela. Eu amo como uma pessoa fala… Eu amo a voz solitária das pessoas. Este é o meu maior amor, a maior paixão.

Meu caminho para esse palco levou quase quarenta anos – de uma pessoa para outra, de uma voz a outra. Não posso dizer que sempre consegui seguir esse caminho – muitas vezes eu estava apavorada e assustada pela pessoa, sentia admiração e nojo, queria esquecer o que tinha ouvido, voltar para o tempo quando não tinha esse saber. Ma também já quis chorar de alegria de ver a beleza da natureza da pessoa.

Eu morei num país onde desde a infância nos ensinavam a morrer. Ensinavam a morte. Nos diziam que o ser humano existe para se entregar, para se queimar, para se sacrificar. Ensinavam a amar pessoa armada. Se eu tivesse crescido em um país diferente, não conseguiria seguir esse caminho. O mal não tem piedade, você tem que ter vacina contra ele. Mas nós crescemos entre os carrascos e as vítimas. Mesmo que nossos pais vivêssem no medo e não contavam tudo a nós, o próprio ar da nossa vida foi contaminado. O mal sempre estava nos espiando.

Eu escrevi cinco livros, mas me parece que isso tudo é um livro só. Um livro sobre a história de uma utopia…

Varlam Shalamov escreveu: “Eu fui participante de uma grandiosa batalha perdida pela verdadeira renovação da humanidade”. Eu reconstruo a história dessa batalha, das vitórias e das derrotas dela. Como as pessoas queriam construir um Céu na Terra. Um paraíso! A cidade do Sol! Mas isso terminou com um mar de sangue, milhões de vidas humanas arruinadas. Mas houve um tempo quando nenhuma ideia política do século XX não se comparava ao comunismo (e à Revolução de outubro como seu símbolo), não atraía os intelectuais ocidentais e as pessoas do mundo todo mais do que ele. Raymond Aron chamou a revolução russa de “ópio para os intelectuais”. A ideia de comunismo tem no mínimo dois mil anos. Podemos achá-la nos ensinamentos de Platão sobre um Estado perfeito e certo, nos sonhos de Aristófanes sobre o tempo, quendo “tudo vai pertencer a todos”… Sobre isso falaram Thomas More e Tommaso Campanella … Depois Saint-Simon, Fourier e Owen. Tem algo na alma russa que forçou a tentar a tornar esses sonhos realidade.

Vinte anos atrás nos despedimos do império “vermelho” com maldições e lágrimas. Hoje nós já podemos olhar para a história recente com calma, como para uma experiência histórica. Isso é importante, porque as brigas sobre socialismo não param até agora. Já cresceu uma nova geração, com uma outra visão do mundo, mas muitos jovens de novo lêem Marx e Lenin. Nas cidades russas abrem museus de Stalin e monumentos dele.

O império “vermelho” não existe mais, mas o homem “vermelho” ficou. Ele continua.

Meu pai, ele morreu há pouco tempo, até o fim foi um fiel comunista. Ele guardava seu cartão do partido. Eu não consigo pronunciar a palavra “sovok”, nome pejorativo dado à URSS, pois desse jeito eu estaria chamando meu pai, pessoas próximas, que conheço bem, meus parentes, conhecidos. Eles todos vêm de lá, do socialismo. Entre eles tem muitos idealistas. Românticos. Hoje eles são chamados de românticos da escravidão. De escravos da utopia. Eu acho que todos ele poderiam viver outra vida, mas viveram a soviética. Por quê? Eu procurei a resposta por muito tempo – viajei pelo enorme país, que há pouco tempo se chamava URSS, gravei milhares de fitas. Aquilo foi o socialismo e também foi simplesmente a nossa vida. Grão por grão eu coletei a história do socialismo “doméstico”, “interno”. Como ele vivia nas almas das pessoas. Me atraía esse espaço pequeno – a pessoa… Uma pessoa. Na verdade, é aí que tudo acontece.

Logo depois da guerra, Theodor Adorno ficou chocado: “Escrever poemas depois de Auschwitz é uma barbaridade”. Meu mestre Ales Adamovitch, cujo nome eu pronuncio hoje com gratidão, também achava que escrever prosa sobre os pesadelos do século XX é um sacrilégio. Aí não se pode inventar.  A verdade deve ser contada do jeito que ela é. Precisa-se de uma “superliteratura”. Quem deve falar é a testemunha. Podemos também lembrar das palavras de Nietzsche, que nenhum artista aguentaria a realidade. Não suportaria.

Sempre me torturou que a verdade não cabe em nenhum coração, em nenhuma mente. Ela é toda partida, tem muito, ela é diferente e está espalhada pelo mundo. Dostoiévski tinha um pensamento que a humanidade sabe sobre si muito mais do que conseguiu gravar na literatura. O que eu estou fazendo? Eu coleciono os sentimentos, pensamentos, palavras do dia-a-dia. Eu coleciono a vida do meu tempo. A história da alma é o que me interessa. O cotidiano da alma. O que uma grande história em geral deixa passar. Eu me preocupo com a história oculta. Até agora me dizem que isso não é literatura e sim um documento. Mas o que é literatura hoje em dia? Quem pode responder?

Nós vivemos mais rápido do que antigamente. O conteúdo rasga a forma. A quebra e a modifica. Tudo sai das suas margens: música, pintura, e a palavra do documento foge dos limites do documento. Não tem fronteira entre o fato e a invenção, um se transforma na outra. Mesmo a testemunha não é neutra. Contando, a pessoa cria, ela luta contra o tempo, como um escultor contra o mármore. Ele é o ator e o criador.

Eu me interesso pela pessoa pequena. Uma pessoa pequena e ao mesmo tempo grande, porque o sofrimento dela a eleva. Nos meus livros a pessoa conta sua pequena história, mas junto com ela narra a grande história. O que aconteceu e ainda está acontecendo conosco, sem que nós percebamos, precisa ser contado. Para começar, pelo menos contar. Nós temos medo disso, enquanto não conseguimos lidar com nosso passado. No livro de Dostoiévski “Os Demônios”, Shatov diz para Stavrogin antes do início da conversa: “Nós somos dois seres que se encontraram no infinito… pela última vez no mundo. Então, largue esse tom e pegue o tom humano. Pelo menos uma vez, fale com uma voz humana”.

Aproximadamente desse jeito começam as minhas conversas com meus herois. É claro que a pessoa fala partindo do seu tempo, ela não pode falar partindo do nada! Mas chegar até a alma da pessoa é difícil, ela está suja de superstições seculares, de paixões e enganos. De televisão e revistas.

Eu gostaria de pegar algumas páginas dos meus diários, para mostrar como andou o tempo, como morria a ideia, como eu seguia os passos dela…

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Anos 1980 – 1985

Estou escrevendo um livro sobre a guerra… Por que sobre a guerra? Porque somos homens de guerra – ou guerreávamos ou estávamos nos preparando para a guerra. Olhando bem, todos nós pensamos de um jeito militar. Seja em casa ou na rua. Por isso, a vida humana vale tão pouco. Tudo é como na guerra.

No início estava duvidando. Bem, mais um livro sobre a guerra… Para quê?

Em uma das viagens de jornalismo eu encontrei uma mulher que era enfermeira durante a guerra. Ela me disse: eles atravessaram o lago Ladoga no inverno, o inimigo viu o movimento e começou a disparar. Os cavalos, as pessoas estavam caíndo embaixo do gelo. Aquilo acontecia de noite e ela, como pensou, agarrou e começou a arrastar um dos feridos para a margem. “Estou o arrastando, todo molhado, despido, pensei que a roupa tinha caído” – contou ela. E já na margem descobriu que o que estava arrastando era um enorme peixe ferido, um esturjão. E xingou tudo – as pessoas sofrem, mas e os bichos, os pássaros, os peixes – por quê? Em uma outra viagem ouvi a história de uma médica de um esquadrão de cavalaria, que durante a batalha arrastou para dentro de uma cratera um alemão ferido. Ele estava ferido, com perna quebrada, sangrando. E só ao chegar descobriu que era um alemão. O inimigo! O que fazer? Lá em cima estão morrendo os nossos soldados! Mas ela coloca curativo nele e vai rastejando adiante. Depois traz um soldado russo desmaiado, que, quando a consciência volta, quer matar o alemão, e este, quando a consiência volta, pega sua arma e quer matar o russo. “Ora dou um tapa na cara de um, ora de outro. E as nossas pernas – ela recorda – cheias de sangue. O sangue se misturou todo”.

Essa foi uma guerra que eu não conhecia. A guerra das mulheres. Não sobre os heróis. Não sobre como umas pessoas  heroicamente matavam as outras. Lembro-me de uma mulher lamentando: “Você vai depois da batalha ao campo. E eles estão deitados… Todos jovens, tão bonitos. Eles deitados olham para o céu. E você fica com pena de uns e de outros”. Este “de uns e de outros” me ajudou a entender sobre o que seria meu livro. A guerra é uma matança. Assim ela se fixou na memória da mulher. Agora há pouco a pessoa estava sorrindo, fumando – e não está mais viva. Mais do que tudo as mulheres falam do sumiço, do quão rápido a guerra transforma tudo em nada. Tanto um homem quanto o tempo humano. Sim, elas pediram para ir ao front, aos 17-18 anos, mas não queriam matar. Porém estavam prontas para morrer. Morrer pela Pátria. Não podemos desmentir a história – por Stalin, também.

Durante dois anos não estavam publicando meu livro, ele não foi publicado até a perestroika. Até Gorbachev. “Depois do seu livro ninguém vai lutar – o censurador me ensinava. – Sua guerra é assustadora. Por que você não tem heróis?” Eu não procurava os herois. Eu escrevia a história através dos relatos de suas testemunhas e participantes que ninguém notava. Ninguém nunca os perguntou. O que as pessoas, pessoas simples, pensam sobre as grandes ideias, disso não sabemos. Logo após a guerra, a pessoa contaria uma guerra e após décadas – uma outra guerra, é claro, algo muda na vida dela, porque ela acrescenta à memória toda a sua vida. O seu próprio ser. A maneira que ela viveu todos esses anos, tudo que ela leu, todos, que ela encontrou. Tudo em que ela acredita. No fim das contas, depende, se ela está feliz ou não. Os documentos são seres vivos, eles mudam junto conosco…

Mas eu tenho certeza absoluta de que nunca mais teremos meninas como aquelas militares de 1941. Era a época mais alta das ideias “vermelhas”, ainda mais do que a da revolução e de Lenin. Sua vitória ainda ofusca o Gulag. Eu amo infinitamente essas meninas. Mas com elas era impossível falar sobre Stalin, sobre como após a guerra os vagões cheios de vencedores íam à Sibéria, com aqueles que tinham mais coragem. Os outros voltaram e ficavam calados. Certa vez, ouvi: “Estávamos livres só mesmo na guerra. Na vanguarda”. O nosso principal capital é o sofrimento. Não é o petróleo, nem o gás – é o sofrimento. Esta é a única coisa que estamos extraindo constantemente. O tempo todo estou procurando a resposta: por que o nosso sofrimento não está se transformando em liberdade? Será que ele é inútil? Chaadaev estava certo: a Rússia é um país sem memória, um espaço de amnésia total, a mente virgem para crítica e reflexão.

Grandes  livros estão sob nossos pés …

Ano de 1989

Estou em Cabul. Eu não queria mais escrever sobre a guerra. Mas estou aqui, nesta guerra de verdade. Do jornal “Pravda”: “Estamos ajudando o nosso povo-irmão afegão a construir o socialismo”. O tempo todo as pessoas da guerra, as coisas da guerra. O tempo da guerra.

Ontem não me deixaram ir à batalha: “Fique no hotel, senhora. Senão terei que responder por você depois”. Estou no hotel pensando: tem algo amoral em assistir a coragem o risco de outra pessoa. Há segunda semana estou aqui e não consigo me afastar da sensação de que a guerra é um produto da natureza humana, incompreensível para mim. Mas o cotidiano da guerra é grandioso. Eu descobri que as armas são lindas: as metralhadoras, as minas, os tanques. O homem pensou muito sobre a melhor forma de matar outra pessoa. O eterno debate entre a verdade e a beleza. Me mostraram uma nova mina italiana, olhe a minha resposta “feminina”: “É bonita. Por que ela é bonita?” Me explicaram com a precisão militar que se passar por cima ou pisar nesta mina assim… com esse ângulo… de um homem vai sobrar meio-balde de carne. Aqui falam sobre o anormal como se fosse normal, evidente. Tipo, é guerra… Ninguém fica louco por causa dessas imagens, quando uma pessoa está no chão, morta não pela natureza, pelo destino, mas por outro homem.

Vi como estavam carregando uma “tulipa negra” (avião, que leva para a terra natal os caixões de zinco com os mortos). Os cadáveres frequentemente são vestidos de uniformes antigos, até mesmo da década de quarenta, mas as vezes até esse uniforme está em falta. Os soldados falavam entre si: “Botaram novos mortos no frigorífico. Está cheirando como se fosse um javali podre”. Vou escrever sobre isso. Temo que em casa não vão acreditar em mim. Em nossos jornais escrevem sobre as vias de amizade arborizadas por nossos soldados soviéticos.

Estou conversando com os caras, muitos vieram como voluntários. Pediram para vir para cá. Notei que a maioria é das famílias intelectuais – filhos de professores, médicos, bibliotecários – resumindo, gente de livro. Eles de fato sonhavam em ajudar o povo afegão a construir o socialismo. E agora estão rindo de si. Me mostraram um lugar no aeroporto, onde havia centenas de caixões de zinco, misteriosamente brilhando ao Sol. O oficial que me acompanhava não se conteve: “Talvez o meu caixão também esteja por aqui… Vão me enfiar lá… E por que estou lutando aqui?” E logo se assustou com as próprias palavras: “Isso não precisa anotar”.

À noite sonhei com os mortos, todos com rostos surpresos: como é que estou morto? Será que me mataram?

Juntamente com as enfermeiras fui a um hospital para civis afegãos, levamos presentes para as crianças. Brinquedos infantis, doces, biscoitos. Eu tive meia-dúzia de ursinhos de pelúcia. Chegamos ao hospital, uma longa cabana, de roupa de cama todos só tinham cobertores. Uma jovem afegã com um bebê nos braços se aproximou de mim, queria dizer alguma coisa, em dez anos todos aqui aprenderam a falar um pouco de russo, eu dei um briquedo para o bebê, ele o pegou com os dentes. “Por que com os dentes?” – me supreendi. A afegã puxou o cobertor do corpinho pequeno, o menino não tinha ambos os braços. “Foi seu bombardeio russo”. Alguém me segurou, eu comecei a cair…

Eu vi nossos mísseis “Grad” transformar as aldeias em um campo arado. Fui ao cemitério afegão, extenso como uma aldeia. No meio do cemitério tinha uma velha afegã gritando. Me lembrei como numa aldeia perto de Minsk estavam entrando numa casa com um caixão de zinco e a mãe estava berrando. Não era nem grito humano, nem de animal… era como aquele que ouvi no cemitério de Cabul…

Confesso que não me tornei livre logo. Eu era sincera com os meus herois e eles confiavam em mim. Cada um de nós tinha o seu próprio caminho para a liberdade. Antes do Afeganistão, eu acreditava no socialismo com um rosto humano. De lá eu voltei livre de todas as ilusões. “Perdoe-me pai, – disse eu ao encontrá-lo – você me criou com uma fé nos ideais comunistas, mas basta ver uma vez como outrora estudantes escolares soviéticos, que você e minha mãe ensinam (meus pais eram professores no vilarejo) em uma terra alheia estão matando as pessoas que elas nem conhecem, para que todas as suas palavras tenham virado pó. Somos assassinos, pai, você entende!?”. Meu pai chorou.

Voltavam muitas pessoas livres do Afeganistão. Mas eu tenho também um exemplo diferente. Lá, no Afeganistão, um moço gritou para mim: “O que você, uma mulher, pode entender sobre a guerra? Você acha que as pessoas morrem na guerra assim como nos livros e filmes? Lá elas morrem bonito. Mataram meu amigo ontem, com tiro na cabeça. Ele correu mais uns dez metros, pegando o próprio cérebro…” Mas, sete anos depois, esse mesmo homem – agora um empresário bem-sucedido que gosta de falar sobre o Afeganistão – me ligou: “Para que servem seus livros? Eles são terríveis demais”. Esta virou uma pessoa diferente, não a que eu conheci no meio da morte e que não queria morrer aos vinte anos …

Eu estava me perguntando que tipo de livro sobre a guerra eu queria escrever. Eu gostaria de escrever sobre uma pessoa que não atira, não consegue atirar num outro homem, a quem a própria ideia de guerra traz sofrimento. Onde ela está? Eu não a encontrei.

Anos 1990 – 1997

A literatura russa é interessante porque ela é a única que pode nos contar sobre a única experiência, pela qual passou um país outrora gigante. Me perguntam frequentemente: por que você sempre escreve sobre o trágico? Porque vivemos assim. Embora agora vivemos em países diferentes, mas em todos os lugares vivem as pessoas “vermelhas”. Daquela vida, com aquelas lembranças.

Eu não queria escrever sobre Chernobyl durante muito tempo. Eu não sabia como escrever sobre isso, com que ferramentas e como abordar. O nome do meu pequeno país, perdido na Europa, sobre o qual o mundo antes quase não tinha ouvido nada, começou a ser pronunciado em todas as línguas, e nós, belarussos, viramos a nação de Chernobyl. Fomos os primeiros a encontrar o desconhecido. Ficou claro: além dos desafios comunistas, nacionalistas e novos religiosos, temos em frente outros, mais ferozes e totais, mas ainda escondidos da nossa visão. Depois de Chernobyl algo começou a se esclarecer…

Na memória ficou gravado, como um taxista velho xingou desesperadamente quando um pombo se bateu no pára-brisa: “Dois ou três pássaros por dia se matam. E nos jornais escrevem que a situação está sob controle”.

Nos parques urbanos arrecadavam as folhas e as levavam para fora da cidade, onde as enterravam. Cortavam a terra das manchas infectadas e também enterravam – enterravam a terra na terra. Enterravam a lenha, a grama. Todos nós tínhamos caras um pouco loucas. Um velho apicultor contou: “Sai para o jardim pela manhã, senti que estava faltando algo, algum som familiar. Nenhuma abelha… Não se ouve nenhuma abelha. Nenhuma! Como? Como assim? Nem no segundo dia saíram, nem no terceiro… Em seguida, fomos informados de que teve um acidente na usina nuclear que estava aqui perto. Mas por um longo tempo não sabíamos de nada. As abelhas sabiam e nós não”.

Os jornais escreviam sobre Chernobyl só com palavras militares: explosão, heróis, soldados, evacuação… A KGB operava na própria usina. Procuravam espiões e sabotadores, havia rumores de que o acidente foi uma ação planejada de agências de inteligência ocidentais para explodir o campo socialista. Rumo a Chernobyl chegava o equipamento militar, os soldados estavam chegando. O sistema funcionou como de costume, do jeito militar, mas o soldado com uma metralhadora neste novo mundo foi trágico. A única coisa que ele podia fazer era pegar grandes doses de radiação e morrer ao voltar para a casa.

Eu acompanhei esse processo de transformação de humano pré-Chernobyl em humano de Chernobyl.

A radiação não se podia ver, palpar, ouvir, cheirar… Esse mundo tão familiar e desconhecido já estava ao nosso redor. Quando eu fui para a área contaminada, me explicaram logo: não pode pegar flores, não pode sentar-se na grama, não pode beber a água do poço… A morte espreitava em todos os lugares, mas essa foi uma morte diferente. Sob as novas máscaras. Em um disfarce desconhecido. As pessoas velhas que sobreviveram a guerra, estavam sendo evacuadas de novo – olhavam para o céu: “O sol está brilhando… Não há fumaça nem gás. Ninguém atira. Bem, que guerra é essa? Mas precisamos nos tornar refugiados”.

De manhã todos ansiosamente pegavam os jornais e logo os deixavam de lado – os espiões não foram encontrados. Sobre os inimigos do povo também não escreviam. Um mundo sem espiões e inimigos do povo, também, não era familiar. Estava começando algo novo. Chernobyl depois do Afeganistão nos tornou pessoas livres.

Para mim o mundo se abriu. Na área eu não me sentia nem belarussa, nem russa, nem ucraniana, mas sim, representante de uma espécie biológica, que podia ser destruída. Duas catástrofes coincidiram: a social – estava se afundando a Atlântida socialista e cósmica – e Chernobyl. A queda do império perturbava todo mundo: as pessoas estavam preocupadas com o cotidiano, com que dinheiro comprar e como sobreviver? Em que acreditar? Sob que bandeira ficar agora? Ou será que precisava se aprender a viver sem uma grande idéia? O último não era familiar a ninguém, porque nunca antes tínhamos vivido assim. O homem “vermelho” estava enfrentando centenas de perguntas, ele as vivia em solidão. Ele nunca tinha sido tão solitário como nos primeiros dias de liberdade. Ao meu redor tinha pessoas chocadas. Eu as ouvia…

 

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Foto: Reuters/Fredrik Sandberg/TT News Agency

Eu fecho meu diário …

O que aconteceu conosco, quando o império entrou em colapso? Antes o mundo estava dividido: os carrascos e as vítimas – é o Gulag, irmãos e irmãs – é a guerra, o eleitorado – é a tecnologia, o mundo moderno. Anteriormente, o nosso mundo ainda estava dividido em aqueles que estavam na prisão e aqueles que os botavam lá, hoje tem a divisão em eslavófilos e ocidentalistas, em traidores-nacionalistas e patriotas. E ainda em aqueles que podem comprar e que não podem comprar. O último teste, eu diria, foi a provação mais grave após o socialismo, porque há pouco tempo todos eram iguais. O homem “vermelho” não conseguiu entrar no reino da liberdade, sobre o qual sonhava tanto na sua cozinha. A Rússia foi partilhada sem ele, deixaram ele sem nada. Humilhado e roubado. Agressivo e perigoso.

O que eu ouvia quando viajava pela Rússia…

– A modernização aqui só é possível atravéz dos sharashki, prisões para cientistas, e fuzilamentos.

– Homem russo parece que nem quer ser rico, tem até medo. Mas o que então ele quer? Ele sempre quer o mesmo: que o outro não fique rico. Mais rico que ele.

– Você não vai encontrar uma pessoa honesta aqui, mas tem pessoas santas.

– Não podemos esperar uma geração que não apanhou; homem russo não entende liberdade, ele precisa do cossaco e do chicote.

– Duas  principais palavras russas: guerra e prisão. Roubou, comemorou, foi preso… Saiu e foi preso de novo …

– A vida russa deve ser cruel, miserável, assim a alma se eleva, ela percebe que não pertence a este mundo… Quanto mais for sujo e sangrento, mais espaçoso é para ela…

– Para uma nova revolução não tem nem força nem loucura suficiente. Não tem coragem. O homem russo precisa de uma ideia que faça o frio correr pela espinha…

– É assim que a nossa vida fica balançando entre o quartel e a bagunça. O comunismo não morreu, o cadaver está vivo.

Tomo a liberdade de dizer que nós perdemos a chance que tínhamos na década de 90. Quando perguntado como deve ser o país –  forte ou digno, onde as pessoas vivem bem, escolheram o primeiro – forte. Agora, novamente, chegou o tempo da força. Os russos guerreandos com os ucranianos. Com irmãos. Meu pai é belarusso, minha mãe é ucraniana. Muitas pessoas são assim. Os aviões russos bombardeando a Síria…

O tempo da esperança mudou para a época do medo. O tempo voltou para atrás… O tempo second-hand…

Agora eu não tenho mais certeza se terminei de escrever a história do homem “vermelho”…

Eu tenho três casas – a minha terra belarussa, terra natal do meu pai, onde eu vivi toda a minha vida, a Ucrânia, terra natal da minha mãe, onde eu nasci, e a grande cultura russa, sem qual eu não me imagino. Elas todas são queridas para mim. Mas é difícil em tempos de hoje falar sobre o amor.


volhaEste artigo foi escrito por Volha Yermalayeva Franco.
Belarussa. Mora em Salvador. Professora de belarusso, russo, inglês e português para estrangeiros. Co-autora do livro didático de português para falantes de russo “Португальский шутя. 250 бразильских анекдотов” (“Aprenda português brincando. 250 piadas brasileiras”). Cantou na banda folclórica belarussa “Guda”. Ministrou oficina de vytsinanka, arte tradicional belarussa de papel recortado, no Museu de Arte Moderna da Bahia. Formada em Patrimônio Cultural e Turismo pela Universidade Europeia de Ciências Humanas, em Vilnius, Lituânia. Mestranda em Conservação e Restauro pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Trabalha com tradução e legendagem de filmes soviéticos, belarussos e russos. Escreve sobre Belarús, sua cultura e patrimônio.

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Andrei Tarasov
Andrei Tarasov

Nasceu em 1989 na cidade de Izhevsk, Rússia. Desde os 17 anos trabalhou no jornal local de sua cidade e aos 19 anos mudou-se para viver em Moscou, e passou 6 anos na televisão trabalhando como repórter e redator. Mora no Rio de Janeiro desde 2014. Ama aviões, gatos, e claro, jornalismo.

 
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