Independência é…

Na ocasião do Centenário da Declaração da Independência da República Popular Belarussa, Dia da Liberdade, comemorado 25 de março em Belarús, estamos apresentando a tradução para português do texto “Independência é…” do famoso escritor e historiador belarusso Uladzimier Arloŭ. Escrito em 1990, o texto até agora não perdeu sua atualidade, para infelicidade do autor. Para saber mais, acesse nossa postagem anterior sobre o Dia da Liberdade em Belarus (25 de março – Dia de Independência de Belarús)

 

Uladzimier Arloŭ
Independência é…

Tradução de belarusso de Volha Yermalayeva e Paterson Franco

 

    Independência é quando você chega nesse mundo num hospital, onde não tem as baratas mais estéris do mundo, porém tem seringas e fraldas descartáveis.
    Independência é quando seu pai vai ao cartório para receber a certidão, provando que você nasceu de verdade, e que chamaram-te em homenagem ao seu avô Ryhor, e a funcionária vai escrever-lhe esse documento com calma e não vai tirar da mesa um “Guia dos nomes próprios dos povos da URSS”[1] e não vai sacudir e explicar histericamente para seu pai que ele pode sem problemas chamar o filho dele de Faizulá ou Mamai, mas não pode chama-lo de Ryhor, pois esse nome simplente não existe nesse mundo (mas o que existe é o nome humano normal Grigoriy[2]).
    Independência é quando você vai à escola e estuda na sua língua (e a menina Grazhyna[3], de quem você gostava na escolinha, –  na língua dela, o seu vizinho Misha, pai de Isaác[4], – na língua dele, o seu outro vizinho, o menino Alyosha, cujos pais se mudaram para cá, porque na cidade deles no rio Volga tinham que pegar fila às 5 da manhã para comprar leite para a criança, – na língua dele). Vão ensinar você na sua língua e seu pai e sua mãe não vão precisar para isso o verão inteiro coletar requerimentos dos outros pais dos meninos, indo para os apartamentos deles, os outros pais, os quais não que não quisessem ensinar suas criancinhas do mesmo jeito que seu pai e sua mãe, mas simplesmente nunca tinham pensado nisso, pois cresceram na época do internacionalismo. E esses requerimentos não terão que ser perdidas três vezes pelo diretor e duas vezes pela secretária, e no primeiro de setembro[5], na reunião solene, você não ouvirá que “a base material e técnica da nossa escola está ficando a cada ano melhor”, e, chegando à sala de aula não saberá que, graças ao cuidado constante do partido e do governo, vocês têm só um abecedário e duas matemáticas na língua materna, para a turma toda.
    Independência é quando sua turma não vai lutar pelo direito de ter nome de Pavlik Morozov ou Aleksandr Myasnikov, porque vocês todos sabem como Pavlik amava seu pai[6] e como Myasnikov amava belarussos[7].
    Independência é quando você vai servir o exército não mais longe do que na cidade ou vila vizinha da sua terra, porém nunca vão ordenar você a pintar a grama e limpar o território “daqui e até o almoço”. No domingo você poderá visitar seus pais ou sua namorada, porém ninguém vai chamar você de “batateiro[8]” e seu amigo de “bunda negra[9]” por que vocês pensam e falam, em sonho nas suas línguas, e “ótimos alunos” da preparação militar e política não vão, em processo dessa preparação, fazer a “bicicleta[10]” para você, e nunca vão ordenar você afiar uma pá de sapador para amoitar em Baku ou Tbilisi.
    Independência é quando sua namorada fala que gostaria de passar fim de semana em Viena, e você honestamente promete a ela, que no sábado vocês vão tomar um café em frente ao palácio de Schonbrunn e sabe que antes da sua viagem ninguém vai interrogar a você se você era judeu na infância, e também, se você já foi para o exterior, e se voltou de lá, com que propósito.
    Independência é quando em Dziady (no dia de finados) você vai ao cemitério e sabe que vai acender uma vela, botar flores, mas não vai virar um participante dum experimento de gás neuro-paralítico ou dum novo modelo de cassetete.
    Independência é quando seu filho levou nota máxima na escola e você o elogia, porque sabe que ele a recebeu não na matéria que ensina sobre a batalha do Lago Peipus e a vitória da coletivização, mas sim, sobre a batalha de Grunwald, que salvou seu povo da morte, e contam a verdade sobre o governo que fuzilou seu avô e matou sua avó de fome.
    Independência é quando um cantor de Nova Iorque vai visitar você, e vocês vão beber umas boas taças de licor de cereja, e depois uns caras gentis à paisana não vão propor a você escrever detalhadamente, onde e o que vocês beberam e quem xingaram enquanto isso.
    Independência é quando você é livre da possibilidade de ouvir como seu presidente ensina compatriotas: “Quem como querer, tal tão habla”, porque seu presidente é um homem alfabetizado e pelo menos uma língua ele fala.
    Independência é quando de repente somem dos programas de televisão e dos jornais as cartas dos incansáveis e dissimulados veteranos e notícias horrorosas sobre nacionalistas e extremistas dos frontes populares, os quais nem dormem de noite, mas excitam a inimizade interétnica entre você, Aliosha e Misha, cujo pai se chamava Isaác, e também Grazhyna, que já há muito tempo é sua esposa, para iniciar uma massacre entre vocês e derrubar o trem da perestroika.
    Independência é quando ninguém assusta você dizendo que seu povo não vai conseguir sobreviver sem o irmão mais velho, porque não tem próprias bauxitas ou diamantes, e você entende que foi à toa que tinha pena dos coitadinhos dos holandeses ou belgas, que não têm nem bauxitas, nem diamantes, nem mesmo um irmão mais velho.
    Independência é quando os caminhões gigantes com o letreiro “Exportação central” (você já viu alguma vez tais caminhões com o letreiro “Importação central”?) vão não para outros, mas para os nossos mercados.
    Independência é quando de repente se esclarece, que aqui também tem pesssoas inteligentes, e se – Deus livre e guarde! – explodir alguma fábrica ou acontecer alguma outra tragédia, não terão que esperar até chegar uma comissão dos moscovitas espertinhos.
    Independência é quando você, deitado no leito de morte, sabe que depois de você passar dessa para a melhor, no lugar da igreja, seja ela católica ou ortodoxa, onde você foi batizado e se casou, não vão cavar um dique com um cisne sujo e não vão construir a piscina da XXVIII reunião do Partido Comunista, e o cemitério, onde seus ossos vão descansar, não vão destruir e transformar num parque de cultura e diversão do companheiro Gorbachev ou do companheiro Ligachev, cheio de garrafas vazias.
    Independência é…
    Independência é quando desde o nascimento até o falecimento se sente uma pessoa na sua terra.
    Eu acredito, que um dia vai ser assim.
    Pois senão, não vale a pena viver.

 

Fevereiro, 1990

 

[1] Trechos em itálico representam frases em russo no texto de partida.
[2] Ryhor é nome típico belarusso, na versão russa seria Grigoriy.
[3] Grazhyna, pelo nome, é, provavelmente, polonesa.
[4] Isaác é nome judeu.
[5] 1º de setembro é o primeiro dia do ano letivo nas escolas e universidades na União Soviética e na maioria dos países pós-soviéticos.
[6] Pavlik Morozov – um menino soviético tido por mártir pela propaganda e condecorado postumamente como Herói da União Soviética por denunciar o próprio pai como dissidente do regime stalinista e ter sido assassinado (tudo em 1932). O pai de Pavlik era etnicamente belarusso.
[7] Aleksandr Myasnikov – um dos responsáveis pelo estabelecimento do poder soviético em Belarús. Era contra a língua belarussa e o estado belarusso independente.
[8] “Batateiro” (bulbash) – nome pejorativo dado aos belarussos pelos russos devido ao esterótipo de que esses comem muita batata.
[9] “Bunda negra” – nome pejorativo dado pelos russos às outras etnias que são mais morenas do que eles.
[10] “Bicicleta” é uma prática surgida no exército soviético, quando botam algodão entre os dedos dos pés dum soldado que está dormindo e tocam fogo, assim ele começa a mexer as pernas, como se andasse de bicicleta.

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Snizhana Maznova
Snizhana Maznova

Estou no Brasil a partir de 2006 e sinceramente posso dizer que adoro esse país com sua cultura tão rica e povo tão simpático. Meu pai é russo e minha mãe ucraniana com raízes da Polônia e Grécia. Até terminar época soviética vivi viajando entre Rússia e Ucrânia e considero os dois países como minha pátria. Além ministrar cursos de idiomas, trabalho como tradutora de russo e ucraniano. Atuo também como intérprete em reuniões entre brasileiros e pessoas da Rússia e Ucrânia, na área turística e viagens de negócio, e assistência para estrangeiros na abertura de empresa no Brasil e pesquisa no mercado etc.

 
Comentários sobre Independência é…
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